Brasil lidera em supersalários e tem 8 em 10 juízes entre 1% mais rico, aponta estudo
Um estudo encomendado pelo Movimento Pessoas à Frente e pela República.org mostra que o Brasil lidera, com folga, o ranking internacional de supersalários no setor público. Entre agosto de 2024 e julho de 2025, foram pagos R$ 20,01 bilhões em remunerações acima do teto constitucional de R$ 46.366,19, valor do subsídio do presidente da República.
Ao todo, 53,4 mil servidores ativos e inativos receberam acima do teto em uma amostra de cerca de 4 milhões de vínculos analisados — o equivalente a 1,34% do universo pesquisado. A conta pesa sobretudo no bolso de quem financia o Estado: o excedente pago com supersalários corresponde a 715,9 mil vezes a mediana anual de renda do país (R$ 27,9 mil). Na prática, é como se o dinheiro despendido em um ano garantisse um salário mensal de R$ 2.200 para 9,1 milhões de trabalhadores com carteira assinada, quase um quinto do total.
Magistratura e MPs concentram a maior fatia
Os dados indicam forte concentração dos supersalários na cúpula do Judiciário e do Ministério Público. A magistratura lidera com 39,5% dos casos identificados. Somados, juízes e membros de MPs respondem por quase 60% das remunerações acima do teto, embora representem apenas cerca de 1% do total de servidores analisados.
Em números absolutos, 21,1 mil magistrados ganharam acima do limite constitucional, consumindo ao menos R$ 11,5 bilhões no período. Já o Ministério Público concentrou 10,3 mil beneficiados e um excedente de R$ 3,2 bilhões. No Executivo federal, 12,2 mil servidores receberam supersalários, que somaram R$ 4,33 bilhões, impulsionados principalmente por honorários advocatícios nas carreiras da Advocacia-Geral da União. O Executivo de São Paulo aparece em seguida, com 6,6 mil servidores acima do teto e gasto adicional próximo de R$ 700 milhões.
Quando se observa a proporção interna de cada órgão, o quadro se torna ainda mais extremo. Entre magistrados, 79,9% receberam acima do teto no período analisado; nos Ministérios Públicos, a taxa chega a 70,4%, e nas carreiras da AGU, a 59,4%. O estudo ressalta que esses percentuais são conservadores, pois parte das folhas de pagamento ainda não está completamente disponível nos portais de transparência. Em levantamentos anteriores, o descumprimento do teto chegou a superar 90% entre juízes e membros de MPs, considerando adicionais e verbas de exercícios anteriores.

Brasil fora da curva no cenário internacional
O levantamento compara o Brasil a outros dez países com estruturas institucionais ou perfis socioeconômicos semelhantes: Alemanha, Argentina, Chile, Colômbia, Estados Unidos, França, Itália, México, Portugal e Reino Unido.
Na amostra internacional, o Brasil aparece como o país com maior número absoluto de supersalários: 53,5 mil servidores ganham mais do que o chefe de Estado. A Argentina, segunda colocada, contabiliza 27 mil casos; os Estados Unidos, 4.081; o Reino Unido, 1.986; México, 1.635. Em França, Itália, Colômbia e Portugal, os casos não passam de algumas dezenas, e a Alemanha não registra nenhum pagamento acima do teto considerado.
A diferença também se mantém quando os gastos são convertidos em dólares ajustados pelo poder de compra (PPP). O Brasil desembolsa ao menos US$ 8 bilhões ao ano com supersalários; a Argentina, US$ 381,7 milhões; os Estados Unidos, US$ 271,2 milhões; e o México, US$ 220,8 milhões. França, Itália, Colômbia, Portugal e Alemanha gastam US$ 4,2 milhões ou menos.
Outro indicador reforça a dimensão do problema: o excedente brasileiro com supersalários equivale a 715,9 mil vezes a mediana de renda do país, enquanto a segunda maior proporção, a da Argentina, é de 25 mil vezes — 25 vezes menor. Nos Estados Unidos, a relação é de 5,3 mil vezes; em França, Itália, Portugal e Alemanha, de 80 medianas ou menos.
Elites do funcionalismo e desigualdade
O estudo mostra que os supersalários se concentram em frações pequenas, mas muito poderosas, da máquina pública, definidas como “elites burocráticas”. Ao analisar quem está no topo da distribuição de renda, o levantamento aponta que quase 40 mil servidores com remuneração anual superior a R$ 685 mil — valor aproximado da linha que separa o 1% mais rico da população — integram carreiras como magistratura, Ministério Público e Advocacia Pública.
No caso específico dos juízes, a combinação de vencimento básico elevado com adicionais, retroativos e verbas indenizatórias faz com que servidores com mais tempo de carreira tenham maior probabilidade de ultrapassar o teto, mesmo sem ocupar cargos de direção.
Para o autor do estudo, o cientista político Sergio Guedes-Reis, trata-se de um arranjo que distorce a lógica de progressão remuneratória. Em vez de premiar funções de comando, o sistema atual favorece quem acumula vantagens ao longo dos anos, muitas vezes desvinculadas de desempenho ou responsabilidade adicional.

Conta bilionária e apoio popular a mudanças
O impacto fiscal dos supersalários não é trivial. Se os limites constitucionais fossem cumpridos, os R$ 20 bilhões hoje gastos com remunerações acima do teto poderiam ser realocados para políticas públicas ou para aliviar o déficit das contas públicas.
A pressão por mudanças também vem da sociedade. Pesquisa Datafolha citada no relatório indica que 83% dos brasileiros defendem uma regulamentação efetiva para coibir supersalários e reforçar a autoridade do teto constitucional.
Segundo Jessika Moreira, diretora-executiva do Movimento Pessoas à Frente, o gasto bilionário “impacta negativamente o orçamento público, amplia a desigualdade remuneratória dentro do funcionalismo e tem efeito desmoralizante sobre a legitimidade do Estado”. Já Ana Pessanha, especialista em conhecimento da República.org, afirma que “não é aceitável que a sociedade financie o enriquecimento de uma pequena elite, em desacordo com o espírito do teto constitucional e em prejuízo da imagem da maioria dos servidores”.
Caminhos apontados para conter supersalários
O estudo sugere um pacote de medidas para enfrentar o problema. Um primeiro eixo é jurídico: redefinir em lei o que é remuneração, o que é verba indenizatória e quais benefícios podem, de forma excepcional, ultrapassar o teto, exigindo que tenham caráter reparatório, duração limitada e criação explícita em lei aprovada pelo Congresso.
Outra frente é institucional. O relatório recomenda fortalecer mecanismos de transparência ativa e passiva sobre salários, criar barreiras para o pagamento de valores retroativos elevados e vedar o chamado “efeito cascata”, que atrela automaticamente remunerações de diversas carreiras ao subsídio de ministros de tribunais superiores.
O documento também defende enquadrar o pagamento de verbas acima do teto sem amparo legal como hipótese de improbidade administrativa, o que significaria responsabilização de gestores que autorizam ou mantêm esses desembolsos.
Por fim, o estudo observa experiências de países como Chile e Reino Unido, que adotam comissões salariais externas para propor ou revisar remunerações de altas autoridades. Para o autor, retirar de corporações diretamente interessadas o poder de definir o próprio futuro remuneratório é um passo crucial para tornar efetivo qualquer teto salarial no Brasil.
Enquanto o debate avança em Brasília, os números revelados pelo levantamento funcionam como alerta ao contribuinte: num país em que metade dos trabalhadores ganha menos de R$ 28 mil por ano, a persistência de supersalários bilionários no topo do Estado reforça a distância entre a elite do serviço público e a realidade da maioria da população.